A onda bateu suave na praia e escorreu de volta mansamente. O menino olhava o mar alto em frente, a Ilha de Itaparica à direita e a Cidade Alta à esquerda e todas as vezes que via, mesmo fora da época lúdica e desassossegada do Natal, achava que ali estava um lindo presépio, que se iluminava e ficava mais belo quando das feéricas luzes da noite, depois que o sol se punha lá atrás da Gameleira. Sempre sonhava com o presépio e pensava que seria possível, um dia, andar por todo essa manjedoura onde tinha de tudo para festejar e iluminar os olhos.

Tinha trens, elevadores, bondes, casas, arranha-céu, carroças. Cavalos, burros, vacas, cabras, pássaros, hospitais, feiras, gente. Era um presépio imenso e um dia descobriu que a imensa lapinha estava pronta por levar o nome do homenageado no período, no dia 25 de dezembro. A Cidade do Salvador. E ele pensou “que coincidência”, pois a cidade, seu presépio de desmedido tamanho era a cidade do Senhor, de Jesus e desde então passou a achar que morava numa cidade santa, e já não era coincidência a existência de tantas igrejas que tocavam os sinos nas horas santas, as horas canônicas, as Matinas, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas, que aprendera nas aulas de catecismo com as freiras italianas que todos os anos vinham para ensinar as histórias dos santos.

Aliás, andou um bom tempo se punir por achar que tinha pecado gravemente e iria para o inferno quando morresse, por ter se apaixonado por Santa Maria Gorete, uma mártir da Igreja Católica que vira numa estampa num álbum de santos. Queria esquecer a virgem e não conseguia, sonhava com ela e se via falando dela com os amigos que pensavam ser sua conversa apenas de alguém interessado na vida de santos. Era paixão e isso o mortificava e lá para as tantas, de tanta aflição no coração tomou coragem e foi se confessar ao padre da Igreja da Boa Viagem, onde morava e o padre, para sua surpresa, disse que era normal, por ser a santa muito bonita e de bela história e que entrara em seu coração para confortá-lo, que não se preocupasse por que com o tempo passando iria entender aquele tipo de paixão. Ele saiu mais confuso, sem saber se o pároco estava querendo dizer que ela também o amava como ele a amava por que o padre disse textualmente “ela também te ama e te protege”.

Com o tempo passando outras paixões de carne  osso foram sobrepondo-se à virgem e ele já em idade avançada só tinha uma frustração que era não ter gerado filhos para que pudesse transferir seu imenso gosto pelo Natal sua aptidão artística para elaborar belos projetos de presépios, o saber enfeitar a casa ou mesmo a sua rua com belíssimas gambiarras e luzes piscantes e empacotar um presente como ninguém mais fazia, em que o embrulho às vezes era mais bonito que o presente e todos falavam isso na loja onde trabalhava no bairro da Calçada, defronte à estação de trem.

E a outra frustração é que o imenso presépio, o estábulo sem par, a lapinha do Salvador tinha se transformado, em sua essência, num inferno. Já não havia bondes, trens, as pessoas andavam tristes, mal educadas, os sinos não mais tocavam nas horas santas, o casario foi tomado por grandes edifícios, a violência era das maiores do mundo e quase ninguém sabia que Natal era uma homenagem a Jesus. Pensavam que as festas natalinas eram coisas de Papai Noel. Ele nem gostava mais de ficar sentado na areia da praia vendo as luzes piscando ao longe. Tinha nostalgia e medo de assalto.

*Jolivaldo Freitas

Escritor e jornalista

Comentário desabilitado.